A conversa com o americano Sam Wasson, autor do ótimo "Quinta Avenida, 5 da Manhã", ensaio sobre Audrey Hepburn e "Bonequinha de Luxo" - o livro de Truman Capote, de 1958, e o filme de Blake Edwards, que fez 50 anos neste ano.
As fotos abaixo são do livro: Audrey no intervalo das filmagens (no cesto: "Deposite aqui seu voto por uma Nova York mais limpa"); com George Peppard, ator que interpretou o Paul (e era um mala, dizem); e com Blake Edwards e um lindo cãozinho anônimo pra mim.
O que o levou a dedicar um livro a "Bonequinha de Luxo" logo após escrever sobre a filmografia do diretor Blake Edwards?
O motivo inicial foi prosaico. Escrevendo “A Splurch in the Kisser: The Movies of Blake Edwards”, percebi que "Bonequinha de Luxo" era fenômeno não explorado: ninguém tinha escrito sobre uma das maiores histórias de amor de Hollywood. Durante as pesquisas para “Quinta Avenida, 5 da Manhã”, ao falar com uma mulher que viu o filme quando estreou, percebi como a produção ajudou a moldar o imaginário feminino no cinema. A mulher era Letty Pogrebin, que anos depois fundaria a "Miss Magazine", importante revista feminista dos anos 70 e 80. Ela tinha acabado de chegar em Nova York, aos 21. Viu em Audrey Hepburn e na personagem Holly Golightly um tipo de garota que nunca tinha visto antes, e a experiência lhe abriu os olhos.
É curioso que, ao mesmo tempo em que a personagem ajudou a mudar o imaginário feminino, Audrey precisou mudar a imagem que tinha de si mesma para aceitar o papel.
Sim, e o fato de uma personalidade de Hollywood como Audrey resistir a aceitar o papel mostra como o filme era avançado. Foi difícil para ela, que tinha se tornado mãe pouco antes e prezava a vida pessoal. A personagem ia contra a imagem que o público tinha dela e a que ela achava que tinha de cultivar. Custou muito aos produtores convencer os estúdios Paramount e o marido de Audrey [o ator e diretor Mel Ferrer] de que isso era algo que ela podia fazer.
De certa forma, então, ela foi moldada por Hollywood para parecer algo que não fosse tão Hollywood.
Exatamente. Mas, quando o filme estava para sair, a Paramount temeu que Audrey passasse uma imagem quente demais e tentou corrigir isso. No material de divulgação, destacou a personagem não como garota de programa, e sim como “kook” [algo como “maluquete”], e ressaltou que a atitude dela era questão de personalidade, e não opção de vida. Além disso, no filme ela aparecia como uma “party girl”, com a relação com os homens sempre só sugerida, nunca explicitada. Decerto isso fez as pessoas se sentirem melhor em relação ao que lhes estava sendo apresentado. Embora o livro de Capote tivesse feito sucesso, era escandaloso, considerando Holly como essa garota cheia de truques, com tendências lésbicas, divorciada e que bebia muito.
Nesse sentido, Audrey foi fundamental para o filme virar o que virou? Seria outro filme com Marilyn Monroe no papel?
Audrey Hepburns era uma boa garota, e Holly Golightly, uma garota má. Unir as duas foi como pôr cobertura doce num remédio amargo. Se Marilyn tivesse ficado com o papel, seria um filme dos anos 50, não dos 60, por um motivo simples: os estúdios teriam sido muito mais firmes em exigir cortes, porque Marilyn era sexy demais. A presença de Audrey permitiu novas ideias disfarçadas sob as antigas.
Fora do cinema o filme também ajudou a moldar a imagem que as mulheres tinham delas próprias?
Creio que sim. Como Letty Pogrebin, outras mulheres passaram a ver de outro modo seu papel na sociedade. Perceberam que era normal ser livre e solteira, que não havia motivo para sentir vergonha.
Como foi esse impacto para Audrey?
Se você vê Audrey em “Um Caminho para Dois” (1967), que é um filme muito melhor que “Bonequinha de Luxo”, você entende. É a melhor performance dela, a mais completa, a mais humana. “Bonequinha de Luxo” foi fundamental para ela chegar àquele ponto.
Sua impressão sobre o filme mudou após escrever o livro?
Com certeza, hoje respeito mais o filme por saber como foi corajoso. Quando alguém assiste hoje, não tem a noção do quanto foi avançado, porque aquilo já faz parte da nossa cultura. Não sabemos como era assistir a esse filme em 1961, sendo uma jovem mulher; partimos de conceitos de uma mulher jovem em 2011, e para esta o filme é fácil e divertido. Em 1961, era avançadíssimo ao abordar como as mulheres podiam se comportar e não percebi isso até escrever o livro. Isso me deu tremendo respeito pela coragem dos realizadores e pela esperteza em enganar os censores para fazer o filme como queriam que fosse feito.
Sem contextualizar, acha "Bonequinha de Luxo" um bom filme?
(Risos) Hmm, não, não o amo tanto quanto a outros de Blake Edwards. O que me levou a ele foi o fato de ser de Blake, e não acho que esteja entre os seus melhores. Meus preferidos são "Vício Maldito" (1962), "Um Tiro no Escuro" (1964), "Gunn" (1967), "Victor ou Victoria" (1982). "Bonequinha de Luxo" foi uma fascinante nota de rodapé de uma carreira muito mais forte. Não penso em Edwards como um diretor fraco àquela altura. Ele foi esperto, soube até onde ir. Sabia que tinha Audrey Hepburn, [o músico] Henry Mancini e [o estilista] Hubert Givenchy e permitiu a eles ficar em primeiro plano. Mas, se fosse um diretor mais forte àquela época, teria feito um filme melhor.
Que problemas você vê?
Acho o filme desajeitado, doce demais. E nunca achei a relação entre Holy e Paul convincente. É difícil comprar a versão de que sejam apaixonados, e é claro que isso se deve ao fato de que, no livro, o personagem dele é gay. Ele nunca deveria ter estado apaixonado por ela, e isso é algo que você vê inclusive nos primeiros rascunhos do roteiro. Há muitos problemas no roteiro. Já do livro eu gosto. Não é o meu Truman Capote preferido, gosto mais quando ele é mais extravagante e arrisca mais, e em “Bonequinha de Luxo” ele tenta conscientemente controlar a prosa. Ainda assim, o livro é mais sombrio, sujo - embora o filme seja mais divertido.
Transformar o personagem de Paul em heterossexual muda toda a essência da história...
É curioso que, nos anos 60, ninguém veria a história de Holly e Paul no livro como de amor, embora hoje seja possível enxergar isso, além da amizade. Já para Hollywood, sendo uma história de amor, era preciso explicar por que os dois não ficavam logo juntos, já que gostavam um do outro. No filme, ele não podia ser gay, como no livro. Assim, se Holly era o tipo de garota que poderia ficar com qualquer um, por que não ficaria com Paul? A ideia de George Axelrod [roteirista] de que se os dois fossem gigolôs foi ótima. Como dependiam disso para viver, não seria fácil decidirem ficar juntos.
"Bonequinha de Luxo" é bem anterior aos filmes que Peter Biskind coloca, no livro "Easy Riders, Raging Bulls", como marcos iniciais da revolução hollywoodiana nos anos 70. É possível dizer que abriu portas?
Queria poder dizer isso, mas não acredito que "Bonequinha de Luxo" tenha iniciado a revolução de Hollywood. Acredito que era, sim, bem mais próximo de “A Primeira Noite de um Homem” (1967), “Bonnie & Clyde” (1967), “Sem Destino” (1969) e filmes europeus daquele período. Dá para dizer que foi um filme à frente de seu tempo, mas não o começo de uma era. Agora, toda comédia romântica posterior a “Bonequinha de Luxo” deve algo a ela. Porque aqui você tem duas pessoas que não têm o sexo como algo proibido. Até então, numa comédia romântica, o sexo era o que impedia que duas pessoas ficassem juntas. A questão era: quando eles vão para a cama? E, quando iam para a cama, acabava. Mas Holly e Paul já tinham ido para a cama - e com outras pessoas. Depois isso se tornou padrão ao ponto de não percebemos como "Bonequinha de Luxo" foi pioneiro.
Sobre moda, há no livro boas histórias como a de que, até os anos 60, o preto era associado só à viuvez, o que implicava que a mulher que vestia preto conhecia o sexo - e que por isso elas não o usavam no cinema até a parceria de Audrey e Givenchy. Você já tinha intimidade com o tema?
É incrível, não? O preto não era uma cor que você visse nas mulheres americanas nos anos 60, especialmente não nas jovens. Talvez nas mais velhas, profissionais. Sobre a pesquisa, olha, acho até que tenho um belo estilo, mas não sabia nada de moda. Estudei um bocado. Me impressionou falar com a assistente de Edith Head [figurinista-chave dos filmes de Hollywood do período, famosa por esconder defeitos dos corpos das atrizes - regra que Givenchy e Audrey quebrariam]. Foi surpreendente conhecer aquela figura trágica que viveu uma era de relevância e sobreviveu às eras seguintes.